Casa silenciosa, apenas os barulhos típicos de uma grande cidade, o ritmo da malícia, milhões de corações a bater em compasso acelerado. Quantas vidas se estarão a desfazer em pedaços no momento em que escrevo, em que a minha caneta massacra o papel com ideias estúpidas, com planos sem sentido? Quantas paixões finalizaram e começaram nestes poucos minutos que levo a ferir uma página de deambulações pelos cantos mais obscuros da minha alma?
Estou aqui, sinto o meu corpo aqui, mas não estou em lugar nenhum. Ser etéreo que vagueia nos becos da vida, entidade que existe apenas nos meus medos mais profundos, heterónimo sem graça, poeta sem jeito, operário de palavras vãs, herói de cópia de tragédia grega, com aquele pathos de desgraça sempre a pairar por cima da minha cabeça.
Procuro-me das formas menos normais, felicidade química que é apenas um sucedâneo de alegria.
Fazia tanto tempo que não escrevia, que não deixava as torrentes de desespero inundarem o meu livro de mágoas, que não deixava o meu desassossego apoderar-se de mim, que não deixava os meus fantasmas virem ao de cima.
Fazia tanto tempo que não pensava em ti, que não me lembrava dos teus olhos cravados na minha nuca, na flor que te ofereci no primeiro dia, que não me recordava das palavras trémulas que trocámos naquela noite, nos risos que partilhámos.
Lembro-me da primeira noite como se fosse hoje. Dois adolescentes inexperientes, pedrados até mais não, a tentarem fazer amor numa cama ainda cheia de peluches, a inocência dos nossos gritos, a essência pura do nosso prazer, o medo de sermos apanhados.
Recordo-me da música que nos acompanhou, "Se eu fosse um dia o teu Olhar", música que me persegue até hoje.
Lembro-me da adição. Lembro-me da agulha espetada na carne, lembro-me quando deixámos de sentir, lembro-me quando deixámos de amar. Quando o nosso único desejo passou a ser dominado pela deusa branca de asas negras, que controlava todos os nossos passos.
Tenho memórias vívidas do teu funeral. Lembro-me do teu caixão a entar na fornalha e lembro-me que não deitei uma única lágrima. Secaste-me as emoções e só depois consegui acreditar no que aconteceu. Ainda não voltei a existir. Ainda sou uma sombra, mas estou a tentar brilhar de novo, com alguma ajuda. Se conseguirei? Não sei. Mas estou no bom caminho.
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